Publicado 23/06/2020
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Atualizado 25/06/2020
Pagando de bacana numa cave do Porto, Portugal
Existem duas coisas na vida que eu já desisti de compreender: plano de celular e vinhos.
No primeiro caso — como todas as questões tecnológicas — deixei por conta do Raul. No segundo, pane total, porque ele também não bebe. E quanto menos a gente entende, mais aparecem amigos tentando explicar a importância dos taninos.
Sabe aquele indivíduo que numa reunião qualquer (tipo, batizado do sobrinho) faz cara de entendido, ergue a taça, analisa o corpo da bebida, enfia o nariz no copo e decreta: aroma de trufa branca com beterraba francesa e notas de cardamomo.
Não existem limites para a atuação do enochato, alcunha derivada do termo enólogo, aquele ser superior com a língua mais apurada da ordem celestial.
Os enochatos se revelam em jantares informais ou num restaurante estrelado. Geralmente implicam com a carta de vinho e com o mestre sommelier. Com apenas um gole já sabem: reflexos violáceos de repolho cozido adocicado com fundo de peroba rosa no retrogosto.
Oi?
Não existe nada de errado na apreciação do vinho. Essa coisa de olhar contra a luz, girar a taça, cheirar a rolha são características importantes para descobrir se a bebida está dentro de um padrão razoável.
Mas o enochato (que pode até ser um enólogo) não sabe a hora certa de fazer isso, quase sempre é um exibido na frente de leigos boquiabertos e estarrecidos. E deuzolivre se você cometer o pecado mortal de dizer que gosta de um rosé.
O enochato é jactancioso e inadequado. Tipo o bicho besta mesmo!
São seres quase sempre de conhecimento raso, que se aproveitam de nossas limitações sobre o tema para exercer um vocabulário rebuscado sem pé nem cabeça.
Observe que o protagonista é sempre ele, nunca o vinho. O enochato precisa de plateia. Portanto, não seja você a dar palco pra maluco.
Sendo obrigada a conviver com essa pessoa sinto-me na obrigação de tirar o indivíduo desse delírio. O truque é simples: finja que sabe mais do que ele.
Pergunte sobre o motivo dos chilenos terem trocado os parreirais de Baquedano pelos vinhedos de Tobalaba. (Ele mal deve saber que você está falando de duas estações de metrô de Santiago.)
Aponte uma questão técnica avançada: qual o impacto do coronavírus na produção dos vinhedos gregos?
Ele imediatamente vai voltar para o seu mundo de reclamações (todo enochato nasce da lamúria) para mudar de assunto.
Esse é o momento de você levantar a taça levemente na altura dos olhos e dizer: aqui temos um quê aveludado, lembra açafrão marroquino colhido antes do amanhecer com notas de fumo de corda e café damasco coado em filtro de seda italiana.
Incrédulo, ele vai te interromper mais uma vez (enochatos são incansáveis, já aviso) para perguntar, então, qual é o melhor vinho para você:
— O próximo, more!
— Mas qual?
— O Dom Quemidón! O quemidón, eu bebo!
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